Como a teoria dos jogos ajuda a explicar os muros e grades dos condomínios em bairros sem graves problemas de criminalidade; e o que pode ser feito, em termos de incentivos econômicos, para tentar reverter esse cenário.
Acredito que muitos leitores aqui do Caos Planejado passam pelo mesmo, digamos, “constrangimento” que eu: basta sairmos da nossa “bolha” e a defesa de questões urbanísticas que, para nós, parecem óbvias (como a necessidade de eliminação de grades e muros, a adoção de fruição pública, de permeabilidade visual, uso misto e fachada ativa, por exemplo), sempre esbarra no mesmo obstáculo — a falta de segurança pública.
É indiscutível que a violência urbana e a sensação de insegurança são dois dos principais problemas das grandes cidades brasileiras. Contudo, enquanto a violência pode ser medida objetivamente, com indicadores de roubos, furtos e homicídios, a sensação de insegurança é mais subjetiva — e, talvez por isso, até mais difícil de ser combatida. Além disso, enquanto a violência afeta de forma diferente, com mais ou menos gravidade, as cidades e os bairros, a sensação de insegurança parece uma constante — ao menos em São Paulo, onde vivo.
Assim, seja na periferia, seja nos bairros ditos “nobres”, independentemente dos dados e do histórico de segurança pública daquela localidade, grande parte dos imóveis residenciais (de São Paulo e também de muitas outras grandes cidades brasileiras) conta com grades ou muros altos, quando não arames farpados ou cercas eletrificadas.
Ainda que ninguém na capital paulista, por exemplo, possa se considerar imune a tentativas de roubos ou furtos, os indicadores de violência variam muito entre os distritos policiais e, muitas vezes, não parecem justificar o excesso de grades e muros das casas e, especialmente, dos condomínios em certas regiões. É o medo, a sensação de insegurança, portanto, que parece estar por trás desses elementos que tanto prejudicam a paisagem e a vitalidade urbana.
Um exemplo bastante simbólico do que estou tentando dizer é o condomínio que citei no meu primeiro artigo aqui no Caos Planejado. Localizado na Vila Romana, um bairro com baixo índice de criminalidade, em uma quadra próxima a duas delegacias, bares, restaurantes, escola, UBS, teatro, lojas de todo tipo e até uma livraria de rua, o condomínio “The Clock” é cercado por muros altíssimos e grades, além de contar com eclusas para o controle de entrada e saída de moradores e visitantes.
Não sou nem quero me passar por especialista em segurança urbana — por sinal, o Caos Planejado já produziu um excelente podcast sobre o tema, que contou com a participação dos especialistas Gustavo Caleffi e Percival Barboza. Minha pequena contribuição aqui será tentar entender a arquitetura do medo presente em bairros com baixos índices de violência a partir da teoria dos jogos, campo da matemática que analisa as interações estratégicas entre tomadores de decisão. E, a partir desse entendimento, pensar em possíveis ações no campo das políticas públicas para tentar reverter esse quadro.
A construção de muros altos nos condomínios: um exemplo de jogo não cooperativo
Imaginemos uma rua tranquila, com casas e prédios sem grades ou muros. Imaginemos, então, que, em um segundo momento, notícias sobre uma onda de violência na região cheguem aos moradores daquela rua, que precisarão decidir agora entre manter as residências como estão ou protegê-las com muros.
Vamos assumir que todos os imóveis da rua tenham a mesma probabilidade de serem roubados e que os ladrões sejam racionais e, portanto, priorizem sempre os roubos mais “fáceis”. Consideremos também que o custo da construção de um muro seja pouco relevante para esses moradores.
Caso apenas um dos moradores decidisse construir um muro, automaticamente aumentaria o risco de que os demais fossem assaltados. A melhor resposta dos demais moradores, assim, seria também construir muros, o que configuraria a situação típica da teoria dos jogos conhecida como “dilema dos prisioneiros” (em referência a história clássica dos dois prisioneiros que são interrogados separadamente), em que decisões racionais tomadas individualmente levam a um resultado “pior” do que o obtido caso os tomadores de decisão (os moradores, no nosso caso) agissem cooperativamente, pensando no bem-estar de todos.
As grades e muros, afinal, prejudicam extremamente a paisagem e a vitalidade urbana; e não só isso. Conforme demonstra estudo do urbanista e pesquisador Renato Saboya para Florianópolis, há uma correlação significativa entre interfaces de baixa visibilidade (muros altos, por exemplo) e a incidência de crimes. Caso a constatação seja válida para a nossa rua hipotética, a construção de muros altos por todos os moradores tornaria aquele local ainda mais inseguro, ao contrário do esperado.
No caso particular das cidades brasileiras, os recuos frontais e laterais dos prédios agravam o quadro, tornando os espaços menos atrativos para os pedestres, diminuindo o fluxo de pessoas nas calçadas (conforme também demonstrado pelo pesquisador Renato Saboya), aumentando com isto a sensação de insegurança e reforçando os incentivos para a implantação de grades e muros, em um verdadeiro círculo vicioso.
É interessante ressaltar que, no nosso modelo hipotético, a simples ameaça de violência — ou seja, a sensação de insegurança — é suficiente para que todos construam muros altos, ainda que nenhum crime tenha sido efetivamente cometido. Em um segundo momento, entretanto, é possível que haja alguma confusão na relação de causalidade, e a não ocorrência de crimes passe a ser atribuída aos muros altos (lembremos que se tratava de uma rua onde não ocorriam crimes). A constante sensação de insegurança e a crença na eficácia dos muros, grades e todo tipo de aparato, por sua vez, tende a gerar uma verdadeira corrida por mais e mais equipamentos de segurança.
Quando a preocupação com a segurança se torna exagerada e contraproducente
Morei por cerca de quatro anos na Rua Cardoso de Almeida, em Perdizes — um bairro que pode ser considerado seguro —, em um condomínio perto da PUC-SP formado basicamente por studios. Ali vivenciei um pouco do patético que pode se revelar quando a preocupação com a segurança se torna irracional.
O prédio ficava quase em frente a um ponto de ônibus. Não foram poucas as vezes que eu e outros moradores perdemos o ônibus porque, para entrar ou sair do condomínio, era preciso passar por dois portões, sendo que um só abria quando o outro estivesse fechado.
A pressa de sair (pois o ônibus acabara de parar no ponto em frente) muitas vezes coincidia com a chegada de outro morador ou visitante que, percebendo a pressa do outro, mantinha o portão da frente aberto, o que, por sua vez, impedia o porteiro de abrir o segundo portão, impedindo, com isto, a passagem do apressado (que acabava perdendo o ônibus), em uma cena digna dos Trapalhões.
Em outras palavras, o esquema dos dois portões era seguido à risca independentemente de qualquer real avaliação de risco, gerando apenas um obstáculo inútil e estressante no dia a dia dos moradores.
Algo semelhante acontecia na entrada dos automóveis, também submetida ao esquema dos dois portões, o que muitas vezes gerava filas de três ou quatro carros para entrar no estacionamento. Parado naquela fila ridícula, muitas vezes me perguntei se as pessoas realmente acreditavam que aquele esquema tornava a entrada no prédio mais segura — minha sensação, ao contrário, era que aquelas filas eram ótimas oportunidades para a realização de arrastões.
Com muitas vagas de garagem, o prédio costumava alugar parte do espaço para um estacionamento privado, o que diminuía bastante o valor mensal do condomínio. Preocupados cada vez mais com a segurança, os donos dos apartamentos em determinado momento decidiram romper o contrato com a empresa que administrava o estacionamento. Para evitar um aumento muito expressivo do valor mensal do condomínio, foi adotada então uma série de medidas para reduzir custos, entre as quais a retirada de algumas das lâmpadas das áreas comuns.
Pois na única vez em que supostamente tentaram invadir um apartamento, a falta de iluminação comprometeu a qualidade das imagens das câmeras de segurança, e o misterioso invasor nunca foi descoberto — não me surpreenderia nem um pouco descobrir que, na verdade, tudo não passou de alguma trapalhada de estudantes embriagados tentando entrar no apartamento errado.
É claro que a minha experiência pode ser uma exceção, mas tenho a impressão de que os condomínios gastam cada vez mais para combater não a violência em si, mas sim uma crescente sensação de insegurança de seus moradores.
Como tudo indicava que a situação só iria piorar e o condomínio ficaria cada vez mais caro — pois pretendiam agora instalar identificação biométrica nas entradas, além de contratar um novo vigia para circular durante a noite pelos andares —, decidimos nos mudar para uma casinha geminada sem recuo em relação à calçada ali perto e, com isto, nos livramos dos custos crescentes do condomínio.
Sem o salão de festas, a piscina e a academia do condomínio, transformamos cada vez mais as ruas do bairro no nosso quintal. Lá estamos há cerca de cinco anos e, felizmente, ainda não tivemos problemas relacionados à violência. O bairro, repleto de escolas, bares, restaurantes, comércio de todo tipo, parece bem seguro, fazendo valer a lógica dos “olhos da rua” da Jane Jacobs.
Um amigo que mora num prédio bem perto de casa, contudo, me enviou recentemente a imagem abaixo, de uma espécie de pesquisa realizada no seu condomínio para avaliar a sensação de insegurança dos moradores — que, para minha surpresa, não pareciam viver no mesmo bairro que eu. Para eles, afinal, o comércio local e as ruas próximas não são locais seguros; não são seguros nem mesmo os acessos ao condomínio, a portaria e a garagem.
O único lugar realmente seguro, de acordo com a pesquisa, é dentro de casa… Viver aprisionado, por sua vez, parece tender a aumentar ainda mais a sensação de insegurança. Quanto mais nos isolamos da cidade, mais insegura ela vai nos parecer.
É possível escapar do “dilema dos prisioneiros”?
A solução para problemas do tipo “dilema dos prisioneiros” costuma passar pela realização de promessas críveis (o que, por sua vez, depende do nível de confiança nos demais “jogadores”) e pela valorização do senso de coletividade. Se o equilíbrio ruim dos muros altos é resultado de decisões racionais individuais, é preciso de alguma forma alterar as motivações dos jogadores de modo que eles passem a olhar não apenas para si, mas para o todo.
Criar incentivos para a implementação de fachadas ativas, áreas de fruição pública e espaços compartilhados no térreo dos prédios, no lugar das atuais grades e muros, parece ser uma medida interessante para melhorar a qualidade de vida em bairros que objetivamente não sofrem com graves problemas relacionados à violência urbana.
Os incentivos, contudo, não podem ser pensados individualmente, para cada condomínio, mas para conjuntos de condomínios ou mesmo ruas inteiras. Caso contrário, corremos o risco de continuarmos presos no “dilema dos prisioneiros” (por que vou eliminar o muro do condomínio se o meu vizinho vai manter o dele?).
É claro que políticas públicas efetivas de combate à criminalidade também são fundamentais. A simples divulgação de forma clara e transparente dos indicadores de violência da região, porém, já pode colaborar para que os moradores dos condomínios se sintam mais seguros e topem a empreitada.
Dar publicidade e visibilidade a condomínios próximos, com boa arquitetura, fachada ativa e fruição pública, sem muros e grades, mas que nem por isto sofrem com problemas de criminalidade, também pode colaborar no processo de retirada dos muros e grades dos demais.
Temo, contudo, que o problema da sensação de insegurança já esteja profundamente enraizado no nosso estilo de vida, a ponto de estruturar a nossa relação com a cidade e o próprio estilo arquitetônico das construções.
Pois vou até mais longe. Gosto muito de uma entrevista do Paulo Mendes da Rocha sobre o projeto do Sesc 24 de maio, no centro de São Paulo. É daquelas falas marcantes, que sempre voltam à minha cabeça em diferentes situações e contextos.
Questionado a respeito do porquê de sua preferência pelo centro de São Paulo, o arquiteto disse que “a vida urbana, de um modo geral, é a coisa mais livre que pode existir para um homem hoje, no mundo. É viver nas áreas centrais das cidades. Tanto que você pode dormir na rua. Este dito medo das áreas centrais é justamente de quem tem medo da liberdade”.
Por causa da violência e, principalmente, da sensação de insegurança, nos refugiamos atrás de grades e muros. “As grades do condomínio são para trazer proteção / Mas também trazem a dúvida se é você que ‘tá nessa prisão”, diz a música d’O Rappa que dá título ao artigo.
Continuamos inseguros, mas nosso medo, agora, talvez não seja mais apenas da violência urbana; aprisionados em casa, acostumados às “bolhas” dos condomínios, nosso maior medo agora talvez seja o de voltar a confrontar a liberdade, a diversidade, os acasos, os “estranhos” e todas as possibilidades que somente um grande centro urbano pode proporcionar.
“Tem gente que tem pavor dessa liberdade”, talvez completasse o Paulo Mendes da Rocha.
Fonte: https://caosplanejado.com/