A designer Cecília (nome fictício) foi multada pelo condomínio por fumar maconha no interior de seu apartamento em Santa Catarina. Ela usa a planta via inalação por prescrição médica, depois que o óleo de cannabis não surtiu efeito para tratar a ansiedade generalizada que sofre há cerca de 20 anos. O caso personifica um dilema cada vez mais comum à medida que a maconha começa a ser usada para uso medicinal e seu uso recreativo tem menos restrições legais: os limites entre os direitos de quem usa o produto e o poder dos condomínios de impor restrições para contentar vizinhos incomodados com o cheiro.
Além de ter crises de pânico, Cecília sofre de fibromialgia e até encontrar a cannabis, usou outros medicamentos, sem êxito. Em casa, ela fuma uma vez ao dia, por no máximo dez minutos. Fecha as portas, não deixa as janelas abertas e mantém os vidros na varanda fechados. Mesmo assim, foi multada, sem ser avisada antes pelo síndico ou por outros moradores, conta.
— Eu não sou traficante. Compro de uma associação, com nota fiscal — defende-se Cecília — Tenho como mostrar que o meu caso é medicinal. Antes de ser atirada a pedra, no mínimo deve-se tentar entender.
A designer diz que foi um vizinho recém-chegado que levou a insatisfação ao síndico, que enviou uma mensagem no grupo de WhatsApp do condomínio para repassar a reclamação e informar o andar do ocorrido. Mas por causa dos cuidados que toma, ela não imaginou que era o alvo. Logo depois, recebeu no e-mail um documento da administração do prédio informando que teria 24 horas para se manifestar. Menos de dez minutos depois, chegou a multa, reclama. Cecília resolveu procurar um advogado.

— Nunca conversei com meus vizinhos sobre isso. É tão na minha vida privada, que algumas pessoas da minha família nem sabem, por questões de preconceito — afirma.
Para rever a multa, de cerca de R$ 300, o síndico informou ao advogado que a questão teria de ser levada para uma assembleia, em que Cecília teria que se expor, mesmo contra sua vontade. Por não ter pago, ela recebeu uma nova punição no dobro do valor da primeira, ficou inadimplente e não pode mais ter poder de voto no condomínio. A designer entrou com um processo por danos morais contra a administração do prédio.
O Supremo Tribunal Federal descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal e definiu que devem ser qualificados como usuários quem portar até 40g ou seis plantas fêmeas de cannabis. Ao invés de crime, a prática passou a ser ilícito administrativo, mas a substância continua ilegal, a não ser por uso médico. Mas o advogado Murilo Nicolau, que já atendeu pessoas que buscavam obter a licença de uso do produto, diz que o desconhecimento faz com que as multas de condomínio reforcem perseguições a quem precisa de maconha por razões de saúde.
— A maconha medicinal é permitida no Brasil há mais de 10 anos. Mas a falta de regulação e caminhos legais para o acesso geram dificuldades aos pacientes, muitas vezes já fragilizados e vulneráveis — lamenta.
Para Ladislau Porto, que advoga para 12 organizações que promovem acesso à cannabis, é preciso entender as diferenças entre o uso em áreas comuns e nas residências. Ele diz que desde que o acusado use mecanismos para diminuir o incômodo, o que deve prevalecer é a inviolabilidade da propriedade privada.
— Se a pessoa tem autorização, ela pode processar o condomínio por dano moral ou constrangimento ilegal — defende Porto — O melhor caminho é judicializar, porque se for levar para outras pessoas, você vai estar expondo sua intimidade.
Mas Emílio Figueiredo, da Rede Reforma, coletivo de advogados “sensíveis às injustiças criadas pela Lei de Drogas”, afirma que, em casos de uso de maconha em apartamentos, deve predominar o direito da vizinhança. Figueiredo acredita que mesmo que o emprego seja medicinal, as reclamações precisam ser levadas em conta para redução do incômodo e até a interrupção do consumo.
— Ninguém é obrigado a sentir em casa o cheiro que não gosta. O mesmo vale para o som alto — compara.
‘Um certo recato’
Segundo o professor de Direito Civil Daniel Dias, da Fundação Getúlio Vargas, uma prescrição médica para o uso de maconha exige uma “ponderação de interesses” no condomínio:
— Pode ser exigido do fumante um certo recato ou descrição — sugere Dias, destacando que o cuidado para não perturbar valer também para cigarros e charutos — Agora, se há um preparo para não incomodar, não existe motivo para reclamação ou multa.
O cerne da questão, para o professor de Direito Civil da USP Eduardo Tomasevicius Filho, está no “uso anormal da propriedade”: quando a conduta do morador prejudica o sossego, segurança e saúde dos demais.
— O problema não é a maconha, mas o cheiro, a fumaça. Poderia ser fumaça de papel ou uma comida com cheiros fortes. O ponto é: pode fumar, mas deve ficar de janela fechada.
O diretor jurídico da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (Abadi), Roberto Bigler, afirma que a entidade já tomou conhecimento de casos em que moradores foram advertidos ou multados em condomínios em razão do uso de maconha dentro de suas unidades, principalmente quando houve reclamação formal de vizinhos em função de cheiro forte ou incômodo.
Bigler adverte que o regimento interno e a convenção condominial são instrumentos que estabelecem as normas de convivência, e é comum que contenham cláusulas sobre “boas práticas”, “bons costumes” e “uso nocivo da propriedade”. Essas cláusulas podem embasar advertências ou multas pelo uso de maconha em apartamentos. Ainda assim, é preciso que o síndico avalie cada caso com cautela para evitar decisões abusivas, sugere.
— A recomendação da Abadi é sempre o diálogo e a busca de soluções que respeitem o direito à saúde do morador os dos demais condôminos. Quando há prescrição médica, o ideal é um entendimento entre as partes, considerando alternativas para minimizar os impactos, como vaporizadores ou o isolamento de ambientes.
Fonte: https://oglobo.globo.com/