Homofobia no condomínio

Depois de chamar a polícia por ter sido chamado de “bicha louca” por um vizinho, um economista de 49 anos acabou se surpreendendo, dias depois, com uma advertência via notificação extrajudicial do condomínio onde mora, no bairro Sion, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, por “prejudicar a tranquilidade” dos outros moradores.

A reportagem de O TEMPO conversou com o economista Marcus Arvellos, que disponibilizou ainda o Boletim de Ocorrência registrado no dia, vídeos que mostram o vizinho confessando aos policiais a ofensa e, também, a notificação enviada pelo condomínio para ele.

O episódio de homofobia ocorreu no dia 2 de outubro, em um momento em que a vítima estava na varanda de sua casa chorando após receber notícias trágicas.

“Eu estava na varanda, olhando para a Serra do Curral, e comecei a chorar. Enquanto isso, eu conversava com o meu esposo, que estava na sala. Neste momento um indivíduo, que estava lá em baixo, na área de lazer, começou a falar ‘vai para dentro sua bicha louca'”, detalhou o economista.

Arvellos conta que, ao ouvir a primeira vez, pensou ter escutado errado, chegando a perguntar para pessoa, que repetiu outras vezes a mesma ofensa. “Depois disso esse vizinho me interfonou falando que um convidado teria falado aquilo, sendo que, por causa da pandemia, não é permitido levar gente de fora para a área de lazer. Pedi apenas que ele me falasse o nome e o endereço da pessoa, o que ele se negou a fazer”, lembra.

Diante da negativa, o economista, que se mudou há pouco tempo para o prédio, foi até a portaria e perguntou quem seria o morador, antes de acionar a Polícia Militar (PM).

“Quando os policiais chegaram, pude ver a cara dele e percebi que se tratava da mesma pessoa que estava me ofendendo, e não o suposto convidado. Foi aí que eu comecei a filmar, e ele acabou confessando que foi ele mesmo e argumentou que estava bebendo desde cedo e que eu estaria gritando. Mesmo que eu estivesse, o que ele fez não se faz em um mundo civilizado”, pontuou Arvellos.

Procurado, o autor da ofensa homofóbica, que mora no local desde 2013 e preferiu não ser identificado, argumentou que voltava da área da churrasqueira quando passou pela varanda de Arvellos e olhou para cima após o porteiro mostrar dizendo que estaria ocorrendo uma “briga”. Entretanto, em um dos vídeos, é possível ver o porteiro, indignado, negando que teria dito qualquer coisa ao homem para os policiais.

“Olhamos para cima e ele xingou, perguntou se perdemos alguma coisa lá, se não tínhamos o que fazer e nos chamou de idiotas. E aí eu falei para ele ‘dar barraco’ dentro da casa dele, que os vizinhos não são obrigados”, disse.

Questionado sobre o BO e vídeos, em que ele confessa ter chamado o economista de “bicha louca”, o morador falou que isso ocorreu “no calor da discussão”. “Foi um xingamento, como qualquer outro que ele proferiu. Não tenho nada a ver com a opção sexual dele. Tenho amigos e parentes gays. Me relaciono muito bem com todos”, completou.

O homem disse ainda que se arrependeu, e pediu inúmeras desculpas. “Depois até me ajoelhei e não adiantou. O que eu podia fazer pra me retratar eu fiz”, finalizou.

A notificação

Passados 12 dias da ofensa, Marcus Arvellos recebeu uma carta e, ao abrir, descobriu, com surpresa, que estava sendo notificado extrajudicialmente pelo condomínio.

No documento, o Condomínio Terrazo Sion afirma que “foram relatadas à administração do condomínio reclamações acerca de conduta inapropriada do notificado, sr. Marcus, em razão de desentendimento com outro condômino”. O documento diz que houve uma discussão entre os vizinhos e cita os “comentários de caráter homofóbicos”, afirmando que o morador responsável pela ofensa foi “igualmente notificado”.

“(O condomínio não pode) admitir que as desavenças sejam resolvidas de forma a prejudicar a tranquilidade e convivência harmônica dos demais condôminos”, complementa a notificação.

“Isso por eu chamar a polícia quando fui vítima de um ataque? Chamar a PM é um direito constitucional meu. A carta inclusive me acusava de ‘convívio antissocial’. Isso me decepcionou muito. Não queria que tomassem o meu lado, mas o errado é quem ataca uma pessoa com base na orientação sexual dela”, argumentou Arvellos.

A reportagem procurou o Condomínio Terrazo Sion, mas a síndica informou apenas que um advogado deveria ser procurado. Até o momento, o representante ainda não se posicionou.

O advogado Leonardo Magno, que representa o economista perante o condomínio, já preparou uma contranotificação que será enviada à administração.

“Acreditamos no diálogo. Se o condomínio quis dialogar com o Marcus através de notificação extrajudicial, cabe a nós responder na mesma medida. Mas como disse, acreditamos sim na conversa e no bom senso. Com a nossa resposta, esperamos uma reflexão mais ampla do condomínio sobre a advertência aplicada e a sua anulação”, disse o defensor.

PM registrou caso como injúria

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu criminalizar a homofobia. Os ministros determinaram então que, até que a Câmara aprovasse uma lei tipificando o crime, atos homofóbicos deveriam ser registrados como racismo, crime que tem pena mínima de 3 a 5 anos de reclusão.

Entretanto, no dia, apesar do acusado ter confessado a ofensa homofóbica, a PM registrou a ocorrência como injúria, crime que tem pena prevista de um a seis meses de detenção, ou multa, e que não é passível de prisão em flagrante.

“É necessário analisar se a conduta dos policiais foi por questões pessoais, em virtude do preconceito enraizado na nossa sociedade, o que se enquadra no crime de prevaricação. Ou se foi por ausência de instrução e preparo de como agir perante tal situação, por não ter ainda uma lei específica para o crime, o que deve ser apurado em processo administrativo próprio”, argumenta a advogada criminal Andressa Braga, que também representa Arvellos.

Durante a entrevista ao jornal O TEMPO, o autor da ofensa contou que os policiais que registraram a ocorrência chegaram a afirmar que o economista seria “difícil”. “Falaram que tem 24 anos que fazem ocorrência e nunca viram um cara tão difícil quanto ele. Eu pedi perdão, e ele irredutível, queria que me levassem preso”, contou o morador.

A reportagem procurou a Polícia Militar de Minas Gerais e questionou sobre o registro da ocorrência como injúria e, também, se a corporação já deu alguma orientação aos militares sobre como agir em casos de homofobia. Até a tarde desta quinta-feira (9), a PM ainda não havia se posicionado.

https://www.otempo.com.br/

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