Há algumas semanas, o Superior Tribunal de Justiça proferiu julgado exemplar sobre tema muito importante, prenunciando uma possível viragem em sua jurisprudência quanto à necessidade de prévia resolução judicial de contrato de compromisso de compra e venda de imóvel em razão do inadimplemento do promitente comprador, ainda que celebrada cláusula resolutiva expressa (também conhecida como direito negocial de resolução ou pacto comissório expresso), para que se defira a reintegração do promitente vendedor na posse do bem.
Na jurisprudência do tribunal preponderava o entendimento de que, ainda que as partes houvessem estipulado cláusula resolutiva expressa, o contrato não se resolveria automaticamente, em caso de inadimplemento: necessário pleitear a resolução judicial do contrato.
Há decisões nesse sentido proferidas mesmo quando vigia o Código Civil de 1916, mas sobretudo à luz de legislação especial relacionada ao compromisso de compra e venda de imóveis. Não raro, tais pronunciamentos emergiram de situações em que havia dúvida quanto à configuração precisa dos elementos que autorizariam a resolução do contrato (por exemplo, quanto a se saber se o promitente comprador teria sido efetivamente constituído em mora). Diante disso, entendia-se não ser admissível ajuizar, desde logo, ação de reintegração de posse do bem. Necessário, antes, pleitear-se a resolução judicial do contrato (ou, pelo menos, que tais ações fossem cumuladas).
Foi o que ocorreu, por exemplo, no julgamento do Recurso Especial 237.539, em 1999, e do Recurso Especial 204.246, em 2002 [1]. Em 2009, já na vigência do Código Civil de 2002, viria a ser proferido julgado marcante, no mesmo sentido, mas a acrescentar mais um fundamento que conduziria a essa conclusão: a boa-fé objetiva. Afirmou-se, no julgamento do Recurso Especial 620.787, que a admissibilidade da cláusula haveria de ser verificada judicialmente com o propósito de se evitar, por exemplo, a resolução “automática” de contrato ainda que, no caso, tivesse havido adimplemento substancial [2].
A jurisprudência do tribunal viria a se tornar constante nesse sentido [3].
Tratamos dessa orientação em alguns de nossos escritos, chamando a atenção para o fato de que, caso se entenda necessária alguma manifestação judicial, esta se daria por decisão de natureza declaratória, e não constitutiva. É que, de acordo com o artigo 474 do Código Civil, “a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”. Assim, enquanto na primeira hipótese as partes convencionam que o contrato se resolverá em caso de inadimplemento (e, claro, uma vez havendo constituição em mora, nos casos em que isso é exigido por disciplina legal específica, tal como sucede com o contrato de compromisso de compra e venda), no segundo caso faz-se necessário um ato adicional a resolver o contrato. Por isso que, havendo cláusula resolutiva expressa, a sentença apenas declarará que a resolução ocorreu; não havendo convenção expressa a respeito, será necessária a prolação de decisão judicial desconstitutiva (ou constitutiva-negativa) que resolverá o negócio [4].
Necessário pedir a declaração de houve a resolução pleno iure do contrato? Pode-se sustentar que não — e a decisão aqui analisada caminhou nesse sentido. No entanto, ainda que não haja pedido nesse sentido, trata-se, inegavelmente, de ponto prejudicial. Se o réu controverter a respeito, e presentes as demais condições previstas no §1º do artigo 503 do CPC, surgirá questão prejudicial e, sobre ela, pesará a coisa julgada, ainda que não haja pedido expresso nesse sentido.
Quer-se com isso dizer que, ainda que se afirme ser desnecessário o pedido de declaração, do reconhecimento de que a resolução já se concretizou (por força do direito convencional de resolução, a cláusula resolutiva expressa) dependerá o julgamento do pedido de reintegração.
Importante não confundir a declaração de que houve a resolução com a resolução que seria decorrente de uma sentença (des)constitutiva de procedência. A decisão declaratória afasta incerteza que existe sobre uma relação ou situação jurídica, mas não cria, extingue ou modificação relação ou situação jurídica, algo que é obtido com uma decisão constitutiva.
O modo de pensar que acabou prevalecendo, no julgado recentemente proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, foi o de que o pedido de resolução (ou mesmo pedido de declaração de que a resolução já teria ocorrido) é desnecessário para que se acolha o pedido de reintegração de posse no imóvel, apresentado pelo promitente vendedor. Ao julgar o Recurso Especial 1.789.863, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, decidiu que a cláusula expressa opera a resolução mesmo que não haja manifestação judicial a respeito:
“Impor à parte prejudicada o ajuizamento de demanda judicial para obter a resolução do contrato quando esse estabelece em seu favor a garantia de cláusula resolutória expressa, é impingir-lhe ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refoge o texto da lei e a verdadeira intenção legislativa” [5].
No voto do eminente ministro relator Marco Buzzi, que acabou prevalecendo, afirmou-se que a orientação antes preponderante não corresponderia à exigência legal. Mas foram adicionados outros elementos a justificar o abandono do entendimento antes pacífico, dos quais dois merecem destaque:
1) A Lei 13.097/2015 alterou o artigo 1º do Decreto-Lei 745/1969, que, em seu novo parágrafo único, passou a prever o seguinte: “Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora”. Assim, a regra prevista na legislação especial, com a reforma legislativa, não se referiria apenas ao modo de constituição do promitente comprador em mora, mas, também, ao fato de que, não purgada a mora, se daria a resolução pleno iure.
2) Diferentemente do que sucedeu anos atrás, quando surgiu a orientação no sentido de que a cláusula expressa não dispensava a necessidade de sentença que acusasse a resolução do contrato, seria necessário, agora, estabelecer “solução distinta mais condizente com as expectativas da sociedade hodierna, voltadas à mínima intervenção estatal no mercado e nas relações particulares, com foco na desjudicialização, simplificação de formas e ritos e, portanto, na primazia da autonomia privada”, como consta do voto do ministro Marco Buzzi, relator do voto condutor do acórdão. De fato, como ali se recordou, o Código de Processo Civil de 2015 enaltece a força normativa da vontade das partes (cf., especialmente, mas não exclusivamente, o que dispõe o artigo 190 do código, sobre convenções processuais) [6]. Além disso, recentemente, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido da constitucionalidade do procedimento extrajudicial de execução previsto no Decreto 70/1966 [7].
A orientação prevalecente, assim, chamou a atenção para dois fatores que autorizam a superação de jurisprudência que, antes, se poderia considerar pacífica.
Como observamos em outro trabalho, autoriza-se o abandono de precedente ou de orientação antes firmada (overruling) quando o raciocínio que lhe é subjacente estiver desatualizado (o que se pode dizer, na hipótese, se considerada a reforma da Lei 13.097/2015) ou mostra-se inconsistente com os valores atualmente compartilhados na sociedade (o que sucede se considerado correto — e parecer ser mesmo o caso — o que se afirmou no voto condutor do acórdão, quanto às expectativas da sociedade hodierna relativas à mínima intervenção estatal, à desjudicialização etc.). Pode-se mesmo dizer que, nessas condições, continuar a aplicar irrefletidamente um entendimento acabaria por significar a sua violação, já que uma orientação é infringida não apenas quando não observada, mas também se, apesar de não mais existentes os pressupostos que levaram à sua concepção, aquela orientação continua a ser aplicada (dá-se, no caso, o que chamamos de violação positiva ao precedente) [8].
A jurisprudência se consolidará no sentido adotado pela decisão aqui comentada, ou se trata, ainda, apenas de uma tendência? Difícil dizer. Como antes mencionamos, a jurisprudência constante seguia outro caminho. Ademais, a decisão proferida pela 4ª Turma do STJ no julgamento do recurso especial 1.789.863 foi tomada por maioria, e desconhecemos manifestação da 3ª Turma ou da 2ª Seção do tribunal (que também julgam temas atinentes ao Direito Privado) a adotar esse mesmo posicionamento.
Trata-se, no entanto, inegavelmente, de julgado que, uma vez seguido, terá condições para ser considerado, verdadeiramente, um precedente em sentido substancial, e não meramente formal. Acompanhemos para verificar o sucederá, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Mas, antes, consideramos relevante chamar a atenção para o voto vencido, proferido pelo eminente ministro Luis Roberto Salomão no caso aqui analisado. Embora discordante da maioria que se formou, ao final do voto o ministro apresentou uma solução de compromisso que, segundo pensamos, poderia ser adotada de modo a concretizar o direito material observando-se as garantias mínimas do devido processo legal. Trecho de destaque:
“(…) Creio seja possível propor, à luz dos princípios da celeridade e da economia processual, a excepcional superação da inadequação da via eleita pela autora no presente caso, mediante a emenda da inicial para inclusão do pedido de resolução do contrato e posterior complementação da contestação pelo réu, anulando-se as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias (com exceção da liminar reintegratória) e remetendo-se os autos ao magistrado de piso para rejulgamento da causa com base nos novos limites objetivos a serem apontados pelas partes, que poderão requerer a produção de provas que considerarem pertinentes sob a supervisão judicial.
A despeito das regras atinentes à estabilidade da demanda após o saneamento — ex vi do disposto no artigo 264 do CPC de 1973, vigente à época do ajuizamento da ação —, penso que a citada proposição se coaduna com a norma inserta no artigo 321 do mesmo diploma, segundo o qual, ‘ainda que ocorra revelia, o autor não poderá alterar o pedido, ou a causa de pedir, nem demandar declaração incidente, salvo promovendo nova citação do réu, a quem será assegurado o direito de responder no prazo de 15 (quinze) dias’.
O novo CPC também autoriza o juiz a conceder à parte oportunidade para a correção de vício antes da prolação de decisão sem resolução de mérito (artigo 317)”.
Esse modo de pensar é condizente com o que antes se afirmou, quando observamos que o reconhecimento de que houve a resolução pleno iure é ponto (ou questão) prejudicial incontornável, pois de sua definição dependerá o julgamento do pedido de reintegração. Caso se considere faltante o pedido declaratório (sem o qual não haveria interesse processual em se pleitear a reintegração), há que se intimar o autor para que o adicione (a nosso ver, a “emenda” se daria por aditamento à petição inicial), evitando-se, com isso, a prolação de decisão terminativa, que não julgue o mérito, mesmo em relação (ou sobretudo quanto) a processos que tramitem há muito tempo. Trata-se, aqui, de manifestação do dever de prevenção, que decorre do dever de cooperação (artigo 6º do CPC), e se encontra previsto no artigo 139, IX, do CPC/2015 (direção material do processo), segundo o qual cabe ao juiz “determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais” [9]. Mas — note-se bem —, não há de se falar, aqui, em “pedido de resolução” ou de “pedido de desconstituição do contrato”, algo que, no caso da cláusula resolutiva expressa, mostra-se desnecessário: o pedido será de declaração de que a resolução já se operou pleno iure.
Trata-se de julgado exemplar, com votos densos e, concorde-se ou não com os entendimentos nele manifestados, digno de estudo e atenção. Estamos, aqui, diante de um precedente que dará origem a uma nova orientação jurisprudencial? Acompanhemos para ver como se manifestará o Superior Tribunal de Justiça em julgamentos subsequentes sobre o mesmo tema.
[1] STJ, REsp 237.539/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 16/12/1999; STJ, REsp 204.246/MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, j. 10/12/2002.
[2] STJ, REsp 620.787/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 28/04/2009.
[3] Ex.: STJ, AgInt no AREsp 1170673/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 08/05/2018; STJ, AgInt no AREsp 1329000/RJ, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, j. 07/02/2019.
[4] Escrevemos a respeito em Código Civil Comentado, em coautoria com Fábio Caldas de Araújo (atualmente em sua 4.ª ed., publicada em 2021 pela Ed. Revista dos Tribunais), no comentário aos artigos 127 e 474 do Código Civil, dentre outros (mais informações sobre esta e outras obras indicadas no presente texto aqui).
[5] STJ, REsp 1789863/MS, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, maioria, j. 10/08/2021.
[6] A respeito, cf. o que escrevemos em Código de Processo Civil Comentado (7.ª ed., de 2021, publicada pela Ed. Revista dos Tribunais), quando analisamos o artigo 190 do Código.
[7] Cf. STF, RE com repercussão geral 627.106, rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, j. 08/04/2021. Sobre o tema, cf. o que escrevemos em Constituição Federal Comentada (atualmente em sua 6.ª ed., publicada em 2021 pela Ed. Revista dos Tribunais), comentário ao art. 5.º, XXXV da Constituição.
[8] Cf., a respeito, o que escrevemos em Curso de Direito Processual Civil Moderno, 6.ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2021, Capítulo VII, itens 3.7.4 e 4.4.2.
[9] Cf., a respeito, o que escrevemos em Código de Processo Civil Comentado cit., em comentário aos referidos dispositivos legais.
Fonte: https://www.conjur.com.br/