Mulher precisou realizar uma rifa de um bolo entre amigos para pagar a taxa para o condomínio onde mora em Fortaleza (CE). Entenda o que diz a lei.
O caso ocorreu no dia 4 de junho, por volta das 6h30 da manhã. Segundo a moradora, que não quis se identificar, quando ela e a cachorra se encaminhavam para portaria do prédio para sair, outro condômino estava com o cachorro em um espaço próximo, que é reservado para pets. Quando os dois animais se viram, latiram um para o outro. Após o estranhamento, ela saiu com a cachorra. Na semana seguinte, a multa chegou.
“Toda a interação não durou um minuto”, relembra a moradora, que é professora universitária. “A minha cachorrinha não faz necessidades em casa. Então eu sempre desço com ela de manhã e de tarde. E eu gosto de sair com ela muito cedo porque ela veio de um abrigo, então ela ainda é muito arisca com outros animais”, explica.
O documento em que a moradora foi notificada da multa, ao qual o g1 teve acesso, afirma que “seu animal é muito ruidoso e emite diversos latidos, então, nesse domingo vários moradores acordaram na hora dos barulhos”. O texto também destaca que, conforme o regimento interno do condomínio, animais domésticos são permitidos desde que “não interfiram na segurança e tranquilidade dos moradores”.
O documento também diz que a cachorra late “excessivamente”, enquanto o outro animal “não reage da mesma forma”. A moradora contesta a descrição do condomínio. “Uma vizinha participa do grupo e ela comentou comigo que achou estranho, porque quando tem alguma reclamação vão logo pro grupo reclamar com o síndico, e ela disse que não houve nenhuma reclamação”, aponta.
O que diz a lei
O que muito vezes é chamado de “lei do silêncio”, na verdade, não é uma lei única, mas um conjunto de regras previstas na legislação brasileira para proibir a perturbação do trabalho ou sossego alheios. De modo geral, a legislação define que é proibido fazer barulho excessivo entre 22 horas e 6 horas da manhã.
Em Fortaleza, a lei municipal 8.097, de 1997, estabelece medidas contra a poluição sonora e destaca que no período noturno – de 22h às 6h – é proibido emitir barulhos que ultrapassem 60 decibéis. É justamente esta regra que, muitas vezes, condomínios usam para orientar a proibição a barulhos.
O professor universitário e advogado Vanilo de Carvalho, especialista em assuntos condominiais, destaca que a lei do silêncio é válida para todos os tipos de barulho – desde cachorros latindo até discussões familiares e música alta.
“O que me causa estranheza é um cachorro latir tão alto que feriu a lei do silêncio. E ainda imagino que na situação, mesmo um cachorro tendo latido, a proprietária do cachorro tenha imediatamente já chamado o cachorro, tentado calar o cachorro e afastado o cachorro dessa situação”, analisa o jurista.
Segundo Vanilo, para o condomínio provar que a moradora feriu a lei do silêncio, seria necessário comprovar que a cachorra, ao latir, ultrapassou os 60 decibéis. A lei do silêncio também aponta que o som, além de alto, precisa ser emitido de forma contínua – ou seja, estar continuamente com som alto. No caso da cachorra, estar continuamente latindo.
A aplicação de multas é uma sanção comum em condomínios, geralmente prevista e descrita nos regimentos internos. Se um morador não pagar a multa, o condomínio pode cobrá-lo na Justiça – do mesmo modo, o condômino pode recorrer aos tribunais para evitar a taxa.
Especialista em assuntos condominiais, o advogado relata que, às vezes, os condôminos acabam por aprovar regras internas que chegam a contrariar a legislação brasileira.
“Todas as leis se regem pela harmonia, uma lei estadual tem que ter harmonia com a lei federal, uma lei federal tem que ser harmônica com os princípios constitucionais e com a Constituição, e uma norma interna, como é o caso de uma norma interna condominial, tem que ser subordinada ao conjunto legal positivo brasileiro”.
O advogado também aconselha aos moradores de condomínio lerem com atenção os regimentos internos e, se necessário, pedir aconselhamento jurídico para evitar que regras ilegais sejam aplicadas nestes espaços ou que os síndicos abusem das regras condominiais.
Sobre o caso da professora multada no condomínio do Bairro Papicu, Vanilo é taxativo: “Ela não só pode, como deve recorrer dessa sanção pecuniária”.
Rifa para pagar a multa
A professora universitária adotou a cachorra em março de 2022 após conhecê-la no abrigo de proteção animal São Lázaro, em Fortaleza. Desde então, a cadela, de cerca de quatro anos, vive no apartamento da docente.
Seis meses antes da multa, ela já havia recebido uma notificação por conta do latido da cachorra em uma situação parecida, após a cadela latir quando as duas estavam saindo do prédio. Agora, quando recebeu a multa, ela pensou em recorrer, mas optou por pagar para evitar abrir uma disputa judicial com a administração do prédio.
A taxa extra cobrada, de R$ 664, corresponde a 80% do valor do condomínio. O valor, que deve ser pago em julho, dificultou as finanças da professora. “Estou numa situação meio complicada, estou trocando de emprego, então me vi totalmente desprevenida para essa multa. Ela [a cachorra] também ficou doente recentemente, eu gastei quase mil reais no veterinário, então foi num período meio apertado”, diz.
A moradora do condomínio, então, resolveu aproveitar um talento: nas horas livres, ela produz bolos confeitados. Para pagar a dívida, rifou um dos bolos. Os amigos ajudaram e outras pessoas, via redes sociais, também compraram os pontos. Em dois dias, vendeu 94 dos 100 pontos da rifa.
O valor superou o necessário para pagar a multa. O dinheiro que sobrou, segundo a professora, vai ser doado para o abrigo São Lázaro, onde adotou a cachorra.
Apesar da resolução, a moradora revelou ter ficado “bastante chateada” com a situação. “Quando eu recebi a multa eu me senti assim… Porque foi muito rápido. Eu não deixei ela ficar latindo para acordar todo mundo, ela latiu e eu tirei ela de dentro do prédio. Eu achei que houve uma certa perseguição. Posso estar enganada, mas foi como eu me senti”, desabafa.
Fonte: https://g1.globo.com/